Jovem autora espanhola surpreende ao mostrar o encontro entre um professor e sua ex-aluna
De Música Ligeira apresenta as características de um autêntico livro contemporâneo, representado pela narrativa não linear, repleta de personagens que vêm e vão, às vezes, atormentados por seus conflitos. Como panos de fundo estão movimentos musicais e sociais como o grunge, rock e punk, que influenciaram de forma decisiva a maneira de pensar e agir dos jovens dos anos de 60, 70, 80 e 90. Apesar dos 21 anos de idade, a escritora espanhola Aixa de La Cruz surpreende ao apresentar um texto maduro, em que os personagens se afastam da aura adolescente, sem deixar de lado os questionamentos pertinentes ao crescimento e a autodescoberta.
Dylan, um professor de piano, autista, e Julia, sua ex-aluna, encontram-se por acaso num pub de Madri e, de forma casual, dividem suas memórias e aflições. Para ambos os personagens, a música tem impacto e influência direta na forma de agir e pensar, especialmente, para o professor, que foi batizado como Bob Dylan pelo pai, fascinado pelo cantor. Sua dificuldade de se comunicar por meio de palavras resulta num mutismo, que é superado com a ajuda de seu dom de tocar piano.
No livro, destacam-se também temas recorrentes, como a relação dos protagonistas com a solidão, a aceitação social, o abuso do álcool e das drogas para representar a inclusão em algum movimento que exige tais comportamentos. A autora enfoca o papel fundamental que a música exerce como modeladora de identidade, atuando no resgate de memórias e solução de problemas. A música, desde Bob Dylan, Sex Pistols, Nirvana, Beethoven a The Smiths, Dire Straits e Madonna, acompanha os diálogos a fim de demarcar sentimentos e épocas.
Trechos do livro
“Miguel, pai de Dylan, nasceu em 1948, ano que a AMPEX lançou suas fitas magnéticas de gravação editável. Seus pais escutavam Beethoven em um gramofone Victrola, com discos de goma-laca de 78 rotações em que o barulho podia ser confundido com os aplausos da plateia. Entrou na universidade em 65, quando ‘Like a Rolling Stone’ começava a tocar em todas as rádios e dividia o público de Bob, que comparecia toda noite, religiosamente, a seus shows metade folk, metade ‘barulho’, para vaiar quando ele surgia na guitarra. Mas batizou seu filho com o nome de Dylan no verão de 69, quando ninguém mais falava de traição, conseguindo assim fugir de todas as discussões.” (p. 17)
“Penso em Julia, que nasceu sem passado em um bar irlandês chamado Twelve O´Clock. Era um desses pubs escuros com listéis de madeira na parede e anúncios de uísque Jameson dos vinte anos. A ideia de não saber muito bem quem ela é me agrada. Agora mesmo, seus olhos brilham por causa da cerveja, e ela lembra uma dessas meninas que gritam obscenidades para Axl Rose na saída de um show. Mas duvido que seja fã do Guns N´Roses. Nos anos noventa, todas as amigas da moça choraram a morte de Kurt Cobain.” (p. 18)
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Onipresente, a narradora desenvolve um texto metalinguístico na medida em que apresenta os quatro personagens principais – Dylan, Miguel, Julia e Aurelio. Ela explica aos leitores a forma como os compõe e as influências sofridas que resultaram na personalidade de cada um deles. “Acabo de criar a Julia sentada, mas posso imaginá-la de corpo inteiro. A imagem cabe perfeitamente em um vagão de metrô que a leva direto para casa”, exemplifica.
Influenciada pelo movimento Generación Nocilla, difundido na Espanha entre os anos de 60 e 70, Aixa de la Cruz explora a fragmentação textual, entrecortando a narrativa por meio de artigos jornalísticos, flashbacks e diálogos. A estrutura aberta do texto não permite ao leitor saber quando a história apresentada começou ou como ela irá terminar. Um recurso de transgressão literária oferecido é a personagem Estelle, que surgiu da adaptação livre da personagem Estella, criada por Charles Dickens em Grandes esperanças.
A linguagem acessível, as construções gramaticais simples e o uso de elementos simbólicos socialmente reconhecidos como determinantes de uma geração – os videogames Atari e Nintendo, o LP, a vitrola ou a música God save the queen, dos Pistols – tornam o livro interessante para diversos públicos.
Cada capítulo de De Música Ligeira envolve o leitor e proporciona uma viagem às décadas passadas que, por meio da música, se mantêm vivas no presente, influenciando os jovens de hoje.
A autora
AIXA DE LA CRUZ (Bilbao, Espanha, 1988) publicou Cuando Fuimos los Mejores, finalista do prêmio Euskadi de Literatura 2008. Foi bolsista da Fundação Antonio Gala, voltada para jovens criadores. De Música Ligeira é seu segundo romance, o primeiro publicado no Brasil.
Estrevista com Aixa de la Cruz
Tinta Negra: Você é uma jovem escritora de 21 anos, casada, tem dois livros publicados, além de um texto de dramaturgia. Sua literatura é bastante madura e repleta de referências clássicas. Ao que você atribui seu desenvolvimento quase precoce?
Aixa de la Cruz: É conveniente para as sociedades capitalistas envelhecidas que a adolescência se prolongue até os 30, ou, se possível, indefinidamente. As pessoas invejam os vampiros de Crepúsculo, condenados a transitar eternamente pelo high school. Para mim a ideia parece grotesca. Em vez de ser vampiro, me concentrei em ser escritora durante os últimos anos. Suponho que aí esteja a diferença.
TN: É possível definir De Música Ligeira como um livro pós-moderno? Você pode explicar quais as principais características de sua narrativa?
AC: Lady Gaga, que tem mais ou menos a minha idade, ri do pós-modernismo. Acho que esta década que se inicia vai sepultar definitivamente esse conceito. Concordo que De Música Ligeira tem uma estrutura que evita a linearidade, é fragmentada, joga com diferentes tipos de discurso… mas quando escolhi essa forma o fiz pensando em uma partitura e em como se comportam distintas vozes dentro de uma determinada harmonia. Ainda estou em fase de experimentação, buscando um estilo narrativo com que eu realmente me identifique. As peculiaridades formais em De Música Ligeira são adequadas para o texto e sua temática, mas ainda não são definitivas no meu projeto literário a longo prazo.
TN: O livro tem a música como um dos personagens principais. A todo o momento, faz referência às bandas representantes do movimento grunge, rock e, especialmente, o movimento punk. Qual a importância do cenário musical na construção da sua literatura?
AC: Neste romance a música é, entre muitos outros papéis, uma ferramenta de caracterização. Uma das coisas que mais me atraem no rock clássico é que durante o século XX soube evoluir, ao mesmo tempo que as revoluções sociais, de maneira que marcou e delimitou grupos urbanos. Não há muita dificuldade em situar um personagem nos anos 70 ou 80 e adivinhar quais são suas origens e inclusive suas ideologias pelo tipo de música que ouve. Por outro lado, a presença obsessiva da música neste romance obedece a motivos pessoais, já que, assim como Dylan, também sou pianista,mas ao contrário dele, nunca deixei de ser medíocre. De todo modo, a ideia que serviu de pontapé para o livro tem a ver com a doença: li sobre a afasia de doentes com graves lesões que não podiam articular nenhuma linguagem, mas que, no entanto, eram capazes de cantar versos com fluidez. Quando você lê uma partitura e vê que o silêncio tem seu próprio símbolo por escrito, entende por que este não se opõe à música. Esta aparente contradição música x silêncio tem muito peso em De Música Ligeira.
TN: Dylan é um homem que optou pelo silêncio para conseguir lidar melhor com suas dificuldades de fala e de interação social. No livro, acompanhamos seu crescimento e desenvolvimento sofrido desde a infância até a vida adulta. Qual seu objetivo ao apresentar um personagem nada perfeito, doente, mas que consegue usar a música como meio de expressão?
AC: Dylan simboliza esse tópico de que o silêncio faz parte da composição da música. Gostava dessa contradição e também gostava de explorar o velho tema da incomunicabilidade sob o ponto de vista concreto, fisiológico. Já se escreveu muita literatura sobre o isolamento físico e voluntário, mas o que acontece quando as palavras não são um dom neurológico? Os humanos se sentem especialmente orgulhosos desse grau de evolução de que se desenvolveu nossa glote e houve mudanças necessárias para que a linguagem aparecesse. É essa a característica que nos faz animais sociais e que nos singulariza como nenhuma outra. Por isso, talvez, temos uma atitude soberba em relação aos sistemas de comunicação alternativos. Quando Dylan decide não falar, quando prefere se adaptar à linguagem de sinais ou inventar um novo método de base musical, ele está desprezando os pilares de toda uma civilização. Vai além da doença; propõe que o mutismo possa ser uma eleição de princípios.
TN: Quem é a escritora Aixa de La Cruz, uma jovem adulta que surpreende ao ter como preferências pessoais, ídolos, ideais tão opostos aos da juventude atual?
AC: Não, não é possível, estou em processo de desaparecimento e recebo ameaças dos criadores do Facebook por ainda não ter um perfil.
TN: As notícias que chegam da Espanha não nos dizem muito da diversidade cultural e da produção cultural do País Basco. Como é a literatura, a música, a cultura basca hoje?
AC: A literatura basca goza de boa saúde, com um mercado editorial forte e muitos autores que escrevem em euskera e são conscientes de estar contribuindo para a revitalização de uma língua minoritária e, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento de uma literatura que em sua forma escrita é muito jovem ainda. O bom de não ter uma tradição nacional forte por trás é que a liberdade acaba sendo maior. Noto, entretanto, que muitos autores bascos encontram/encontramos esses referenciais clássicos num legado anglo-saxão, mais do que na tradição espanhola ou francesa. Isso também se nota na música; o rock e, sobretudo, o punk de corte britânico tiveram vital importância na Euskadi dos anos 70 e 80, e continua tendo impacto hoje, embora a oferta seja muito variada e se afaste das etiquetas fáceis.
Dados Bibliográficos
DE MÚSICA LIGEIRA
AIXA DE LA CRUZ
16 x 23cm, 208p.
Literatura estrangeira, cultura, música, comportamento
ISBN 9788563114167