Retratos de um povo em moleskines
Jornalista portuguesa revela minúcias de uma nação com cheiros, ruídos, paladares, cores e temperaturas que conduzem o leitor a um Afeganistão ainda inexplorado
Aclamada como dona de um dos melhores e mais literários textos da imprensa portuguesa, Alexandra Lucas Coelho reúne em Caderno Afegão as anotações da temporada em que esteve no Afeganistão como colunista do jornal Público, de Lisboa. Alexandra esteve na fronteira do
Afeganistão em setembro de 2001, logo após o ataque às Torres Gêmeas, e esperou sete anos para finalmente viajar pelo país. Em 2008 as esperanças de paz tinham sumido e a violência era maior que nunca. Desde o começo ela tinha a ideia de desenvolver um diário de viagem à parte das reportagens e matérias produzidas in loco. “Quando parti, já tinha a ideia de escrever um diário. Uso sempre cadernos Moleskine para tomar notas. Então levei quatro para as reportagens no Afeganistão e outro para o diário. Obriguei-me a escrever nele todos os dias.”
Assunto era o que não faltava para Alexandra. Entre a reportagem e o registro pessoal, a autora combina com habilidade o olhar incisivo – indispensável ao jornalismo – a uma abordagem sutil e feminina. Em seu Caderno, Alexandra cunha uma obra que transcende o noticiário internacional: a partir dos relatos de experiências, impressões e encontros com os mais diversos tipos humanos, combinados em uma narrativa ágil e corajosa, o leitor é capaz de entrar em contato com o verdadeiro Afeganistão. “A base do livro não é reportagem, mas um diário inédito. “Depois fui ampliando descrições, histórias, incluindo referências de livros, matérias de várias leituras e também pedaços de reportagens nos dias em que elas aconteceram, de forma a reconstituir cada dia”, explica.
Trecho do livro
“Chamo o meu primeiro táxi da Afghan Logistics para ir ter com Jolyon Leslie à Fundação Aga Khan, na parte antiga da cidade. Chove em Cabul. Pedras, buracos, arame farpado. Polícias sinaleiros com máscaras cirúrgicas por causa da poluição, mulheres só com os olhos à mostra, burqas. Leio nomes: Liceu Malalai. Reconheço nomes dos livros de viagens: Chicken Street, Mustafa Hotel. Seguranças fortemente armados por toda a parte. Um homem de turbante e tapete ao ombro, pronto para rezar quando chegar a hora. Carrinhas Land Cruiser da ONU e carros de vidros escuros. Depois, a caminho da Cidade Velha, um bazar de velhas bancas, tomates, melões, melancias gigantes. O rio podre com colinas dos dois lados cheias de casas de terra batida, de cimento, de madeira, de zinco, casaslbarracas numa inclinação a pique, e logo em baixo letreiros da Sony Ericsson. Está vento e as túnicas enfunam ao vento. As motas e as bicicletas furam entre os carros, com mulheres e crianças agarradas ao condutor. Algumas têm máscaras cirúrgicas. A água da chuva escorre pelos degraus toscos. Passamos um cemitério cheio de bandeiras verdes. — Shahid — diz o taxista. Palavra árabe para mártires. O taxista chamalse Zabi e diz que nasceu por trás desta colina. — Mas já não vivemos aqui. Como dizem taxistas nascidos em Alfama.” p. 17)
Vestígios de esperança em uma terra desolada
Entre maio e junho de 2008, Alexandra passou por Herat, Jalabad, Kandahar, Mazar-i-Sharif, Bagram, Band-e-Amir, Bamyan e, claro, a capital Cabul, uma cidade que acorda em meio a poeira, pedras, arames farpados, engarrafamentos, tiros e corrupção, mas dorme como uma aldeia em silêncio.
Sem deixar de contextualizar os conflitos, seu foco está no dia a dia de um povo que, herdeiro de uma cultura rica e diversa, vem há décadas sofrendo com a guerra civil e as sempre violentas intervenções estrangeiras — como a ocupação soviética, no final dos anos 1970, e a presença norte-americana, iniciada em 2001, com a derrubada do regime talibã.
Durante o percurso, a autora ouviu os civis que precisam viver em meio a fogo cruzado e campos minados. Entre eles estão a jovem e audaciosa deputada Fauzia Kufi, que se recusa a se filiar a qualquer partido político e recebe constantes ameaças de morte; o empreendedor Tareq, criado nos Estados Unidos, que, após a queda do talibã, retornou à terra natal com diversos projetos, entre eles o de criar uma equipe de boxe feminino; e Shah Mohammed, também conhecido como o “livreiro de Cabul”.
Da pobreza financeira a conhecimentos filosóficos, literatura refinada e chás perfumados com cardamomo
A autora aborda questões como espiritualidade, alimentação e vida doméstica — minúcias que se mostram extremamente reveladoras da condição afegã. O livro ainda descreve a degradação e o sofrimento a que as mulheres estão sujeitas em uma sociedade onde até no necrotério os cadáveres são segregados por gênero. Ao lado de instituições como o Crescente Vermelho — equivalente à Cruz Vermelha Internacional — e a Fundação Aga Khan, há uma movimentação popular para promover e reconstruir os valores da sociedade civil. É Alexandra mesmo quem descreve o que mais a impressionou na sua temporada afegã:
“A família de Cabul que desmonta todas as ideias feitas: uma família tão pobre que cozinha ovos num bujão de gás, mas tão rica que lê Wittgenstein e coleta dinheiro entre parentes e amigos para enviar as suas várias filhas a estudar na Europa e nos Estados Unidos, sendo que todas elas querem voltar ao Afeganistão e fazer algo pelo país. Uma família em que a mãe, professora, se senta ao lado das filhas de cabeça descoberta e dos amigos, rapazes, que as vêm visitar, e o pai, filósofo, convalesce num quarto cheio de livros, tudo isto numa modestíssima casa de Cabul”.
Em Caderno Afegão, Alexandra Lucas Coelho faz com que os olhos ocidentais sejam capazes de reconhecer que o Afeganistão, mais do que uma zona de guerra e fundamentalismo, é uma nação com nomes, rostos, planos e ideais humanos a seus habitantes.
Sobre a autora
Alexandra Lucas Coelho nasceu em Lisboa, em 1967. Jornalista e escritora, é correspondente do jornal Público no Rio de Janeiro. Estudou teatro e ciências da comunicação. Começou sua carreira no rádio nos anos 1980.
Foi jornalista da RDP de 1991 a 1998 e desde então trabalha no Público, onde editou os suplementos “Leituras” e “Mil Folhas”, foi editora de Cultura e atualmente integra a equipe de Grandes Repórteres. Em 2001, começou a viajar pelo Oriente Médio e pela Ásia Central. Entre 2005 e 2006, esteve dois meses baseada em Jerusalém como correspondente.
Recebeu prêmios de reportagem do Clube Português de Imprensa, do Caderno Afegão. Casa da Imprensa e o Grande Prêmio Gazeta 2005. É autora dos livros Oriente Próximo, Viva México e Tahrir – Os dias da revolução no Egito. Seu primeiro romance, E a noite roda, está no prelo, com lançamento previsto para março de 2012.
Informações bibliográficas
CADERNO AFEGÃO
Um diário de viagem
ALEXANDRA LUCAS COELHO
14 x 21cm, 312p.
Viagem, reportagem, cultura
ISBN 9788563876232